Não importa a região do globo, quando o assunto é o setor da saúde o conservadorismo ainda impera. Mesmo em mercados onde a profissionalização das empresas já aconteceu, como o norte-americano, abordar novas tecnologias e extrair benefícios que análise de dados, computação em memória e outras soluções podem trazer requer uma habilidade de negociação ímpar e não apenas com a classe médica. A mudança cultural tem que atingir a gestão, os médicos e também pacientes, principalmente num cenário que aponta que os dados de saúde devem dobrar a cada 73 dias até 2020.
Tomando como exemplo apenas o uso de dados diversos para melhorar o tratamento em determinadas doenças, muitos pacientes ficam reticentes em liberar suas informações. Alguns médicos são céticos às ferramentas e à mudança de conduta em determinadas situações, meio que como se houvesse um questionamento à sua capacidade de definir qual a melhor abordagem. Por fim, vem o corpo gestor, que pode temer em investir pesado em tais soluções, mesmo existindo casos de que sua aplicação interfere em tratamento, qualidade de vida e, consequentemente, em custo.
A boa parte da discussão é que ela evoluiu. Se há alguns anos – falando de Brasil obviamente – hospitais discutiam a resistência em torno de zerar o papel em diversos processos, hoje o patamar do debate está mais elevado, entrando no campo do analytics, computação em nuvem, compartilhamento de dados, captação de informação de fontes como redes sociais e wearables e por aí vai.
Exemplos de como essas tecnologias podem e já são utilizadas existem e vem de diversos locais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a American Society of Clinical Oncology (Asco) trabalha no desenvolvimento da plataforma de informação de saúde CancerLinQ. O objetivo da empreitada é melhorar o tratamento com métricas e benchmarking em tempo real a partir de dados históricos e atuais para direcionar a melhor abordagem para o paciente. Desenvolvendo um olhar individual.
“Trata-se de uma iniciativa de tecnologia que redesenha a forma de encarar o câncer e o tratamento das pessoas. Queremos que a ferramenta ajude os médicos no tratamento das pessoas, com medições em tempo real, métrica de evolução dos tratamentos, entre outros pontos de análise”, explicou Rich Ross, diretor de operações do CancerLinQ para a Asco, ao participar de um painel sobre como a informação pode ajudar o setor da saúde em tratamento, diagnósticos e operações durante o Sapphire Now, realizado pela SAP em Orlando (EUA).
Novos modelos
Uma plataforma como a CancerLinq pode individualizar o tratamento de qualquer tipo de câncer, quando, hoje, o mais natural é adotar protocolos padrão com base em estudos produzidos pela indústria farmacêutica. Os médicos, lembra Ross, reconhecem a disponibilidade de muitas informações, mas não fazem ideia de como utiliza-las para beneficiar o paciente ou mesmo facilitar o dia a dia profissional. Então, como transformar esses dados em algo útil?
Apenas nos Estados Unidos, 1,7 milhão de pessoas são diagnosticadas com câncer anualmente de acordo com a American Cancer Society e boa parte desses pacientes participa de triagens ou mesmo de testes de protocolos de tratamento. Imagine utilizar as informações desses milhares de prontuários para alimentar uma plataforma como a CancerLinQ onde médicos e pesquisadores poderiam comparar dados globais, de grupos, de determinadas geografias e utilizar tudo isso para avançar no tratamento ou individualizar a conduta de acordo com a especificidade da doença x perfil do indivíduo.
“Mas claro que envolve privacidade, segurança, tem um componente muito grande de educar o paciente e mostrar para o que será usado, mostrar que tipo de avanço no tratamento de câncer pode ser gerado por meio das informações. É um trabalho de transparência”, argumenta Ross, para concluir: “A complexidade não está na tecnologia, mas em entender como as informações vão ajudar e convencer o uso do dado.”
Há esperança?
Se do lado de uma associação a questão cultural surge como um desafio a ser suplantado, o que dizer, então, de uma rede de cuidados que envolve médicos, voluntários e um grupo de hospitais na Califórnia (EUA)? Na Sutter Health o desafio está em torno do prontuário eletrônico e das estruturas de dados independentes e que limitam um trabalho mais eficiente em tratamento, qualidade de vida e até na gestão da rede.
Para Vijay Venkatesan, vice-presidente de Enterprise Data Management da Sutter Health, o grande avanço em saúde ainda vem do prontuário e, agora, isso migra para o mundo dos dispositivos móveis que carregam diversas informações dos pacientes, são devices que criam dados a partir do corpo que, de alguma maneira, poderiam ser aproveitados. “O desafio em dados de saúde é a coleta em estruturas independentes. Essa cultura de conversa do dado e interdependência dele é extremamente importante para o setor avançar. É preciso mudar a cultura e quando se consegue isso, o aproveitamento do dado consumerizado acontece”, provocou, durante a sessão no Sapphire Now.
Venkatesan lembrou que, no início das conversas, tudo girava em torno do modelo do dado, da governança da informação, algo muito acadêmico. A saída para ganhar apoio ao projeto foi discutir a solução do ponto de vista do paciente. Ehttps://stg.itforum.com.br/wp-content/uploads/2018/07/shutterstock_528397474.webpso do assunto, ele afirmou que na maioria das organizações se fala de analytics para insights, e na Sutter ele passou a discutir analytics para proteção da pessoa. Embora o diálogo tenha avançado, ele admite que essa cultura precisa ganhar força. “Nosso objetivo é impactar o paciente da melhor maneira.”
Chegando ao genoma!
O trabalho a ser desenvolvido na Sutter Health tem objetivo de prever a partir dos dados impactos diversos, seja por informações geradas pelos médicos, pelo paciente, por devices ou mesmo a partir da situação social ou geográfica da pessoa. Para isso, Venkatesan entende que é necessário diferenciar o profissional clássico de analytics do cientista de dados. “É necessário olhar operação e o dado. A tecnologia habilita essa mudança de cenário. Buscamos pessoas que sejam boas em exploração e mineração de dados, estamos também na transição do desenvolvedor tradicional para alguém que tenha uma visão mais completa”, compartilhou.
No que tange a questão cultural, o trabalho é longo e complexo como o de encontrar os profissionais adequados, principalmente quando se fala em dado consumerizado. Mas o especialista alerta, no entanto, que a batalha não deve ser das mais difíceis. Dará trabalho, mas não será impossível. “É preciso que haja alguma mudança no comportamento do paciente. Estamos confortáveis em postar diversas coisas no Facebook, mas não em compartilhar esse tipo de informação que pode salvar vidas, mas é uma mudança geracional”, acredita.
O último exemplo vem da Alemanha, onde o Centro Nacional de Doenças Tumorais em Heidelberg tem apostado no uso de analytics rodando em plataforma Hana para promover saltos no tratamento dos mais diversos tipos de câncer. Como explicou o diretor da instituição, professor doutor Christof von Kalle, o centro está computando em uma solução que roda em banco de dados em memória informações da doença e tratamentos aplicados em diferentes pessoas.
A aplicação desenvolvida permite cruzamentos de resultados para entender melhor a evolução e eficácia dos tratamentos para, quando possível, individualizar a abordagem. “O sistema avalia pacientes por tipo de tumor, área afetada e por impacto da terapia. Podemos ir a fundo na investigação, chegando ao detalhe do genoma e na mutação do câncer por célula e tudo em tempo real”, explicou. Agora, é aguardar para que todo esse avanço se propague para além do câncer e que a tal mudança cultural necessária para que isso seja aplicado em escala aconteça.